Paróquia de S. Cristóvão do Muro

Vigararia Trofa/Vila do Conde
Diocese do Porto - Portugal

sábado, 20 de agosto de 2016

A TEORIA DA IGREJA DO MARCO DE CANAVEZES



No livro "Imaginar a evidência" (Edições 70) o arquitecto Álvaro Siza Vieira explica a teoria da igreja de Santa Maria
   
   
«A Igreja para Marco de Canaveses, é só uma parte de um conjunto religioso que prevê ainda um auditório, a escola de catequese e a habitação para o pároco.

A visita ao local pré-escolhido tinha-me perturbado profundamente: era um local dificílimo, com grandes diferenças de cota, sobranceiro a uma estrada com muito tráfego.
Como se não bastasse, aquela zona estava marcada por edifícios de péssima qualidade.
A construção deste centro paroquial é por isso e também a construção de um lugar, em substituição de uma escarpa muito acentuada.

A igreja articula-se em dois níveis: um superior, da assembleia, e um inferior, da capela mortuária.
Como mostram os percursos de acesso às duas cotas, trata-se de espaços com características decisivamente diferentes.
A capela mortuária é quase a fundação da própria igreja: cria uma cota estável, fixa, para que a igreja possa apoiar-se.
Além disso, com os seus muros de granito e o claustro, estabelece a distância em relação à estrada.
Esta plataforma habitada devia portanto surgir como “natureza construída”.
Mas é muito importante também a colocação, defronte do acesso principal, do centro paroquial e da residência do pároco.

Estes volumes definem um grande “U” que se contrapõe ao pequeno “u” formado pelas duas torres, a do campanário e a do baptistério.
Cria-se, assim, o espaço necessário para o grande volume vertical da fachada.
Ao mesmo tempo, torna-se possível uma relação com as construções de pequena escala que circundam esta acrópole.
Fica, assim, demarcado o adro.

A referência inicial foi uma construção pré-existente, uma residência para a terceira idade, de uma arquitectura correta e ordenada, situada na cota superior da escarpa e com uma extensão muito significativa em relação à estrada.
A partir deste novo nível, tudo o resto se foi articulando, reagindo à complexidade das construções existentes e permitindo finalmente a criação de um adro, aberto sobre o belíssimo vale de Marco de Canaveses.

Esperemos que novas construções não se venham a encostar às péssimas que já lá existem e se mantenha a abertura sobre o vale, que é essencial.
A própria grande porta da igreja, com os seus dez metros de altura, tem razão de existir exactamente em relação a esta vastíssima vista.
A entrada faz-se, normalmente, através de uma porta de vidro, debaixo da torre da direita, enquanto a porta grande só é aberta em circunstâncias especiais.
Depois do movimento lateral de entrada, tem-se a percepção de uma janela baixa e comprida, do lado direito, que permite ainda a vista para o exterior.
Naquele instante, não se sente a luz difusa que chega das altas aberturas na parede curva e inclinada, à esquerda: Vêem-se, ainda e imediatamente, o vale e as construções em frente.

A janela contradiz o ambiente de recolhimento a que estamos habituados numa igreja e por este motivo gerou polémicas.
O mesmo se deu com a colocação da estátua da Virgem, que é quase tão alta como os fiéis e não está assente em pedestal.
Todavia curiosamente, um teólogo, muito estimado no Porto elogiou o respeito pelos actuais princípios da liturgia, que acentuam a função de mediação da Virgem entre Deus e os homens e por consequência entre os homens.
De facto a estátua da Nossa Senhora tem uma posição intermédia: colocada na extremidade da janela e sujeita a uma luz muito intensa, introduz ao espaço do altar, que quem entra não nota imediatamente.
Três degraus elevam o plano da celebração, que conclui com duas portas, pelas quais entra luz clara, filtrada por uma alta chaminé.

Esta disposição dialoga com o banho de luz sobre as formas curvas dos limites laterais da abside e sobre o espaço da igreja em geral.
A iluminação natural varia com o tempo, dependendo da posição do sol, e vai desde a projecção do desenho do raio de luz até ao silêncio da aspersão: um grande intervalo, rigoroso e palpável.
A montagem de todos os elementos é, evidentemente, coerente.
Todavia esta ordem, caracterizada por algumas contradições existentes e desejadas, foi construída de maneira lenta e laboriosa.
Não houve ideias pré-definidas, dadas à priori.

Aquilo que é agora legível é o resultado da decantação de determinadas reflexões sobre o espaço, hoje tão difícil, da igreja.
Esta dificuldade é devida a uma série de importantes alterações na liturgia: pense-se na celebração da missa, que agora encontra o sacerdote virado para a assembleia e não de costas.
Uma tal mudança transforma por completo o carácter da celebração e anula o sentido de organização espacial tradicional, nas suas várias formas e na sua lenta e permanente evolução.
Ao mesmo tempo, esta nova condição não justifica a interpretação da igreja como auditório.
A quase totalidade dos projectos recentes não aprofunda devidamente este aspecto.
Era indispensável, por conseguinte, uma reflexão sobre as condições, poderíamos dizer funcionais, do espaço da igreja.

E no entanto as discussões com os teólogos puseram em evidência a contradição que envolve hoje as diversas interpretações.
Trata-se, por isso, de um programa instável, ainda por resolver.
Todavia era evidente a necessidade de criar uma projecção do celebrante, uma comunhão com a assembleia, sem que, inevitavelmente, se criasse aquela distância própria de qualquer auditório.
Por esta razão propus, para a abside, curvaturas já não côncavas mas antes convexas.
E também neste caso não se trata de uma ideia pré-concebida, imediatamente derivada da variação da liturgia: é uma intuição, nascida de uma série de exigências, entre as quais a necessidade de conservar a relação entre os objectos e os movimentos que fazem parte da celebração.

No espaço em volta do altar existe uma série de elementos que participam no ritual: o ambão, o próprio altar, o sacrário, as cadeiras dos celebrantes e a cruz, os quais lentamente tomaram corpo e definiram depois o espaço, no respeito pelos movimentos, pré-estabelecidos, da missa. Assim a igreja adquiriu forma como uma escultura em negativo, na qual se foram estabelecendo relações de continuidade e de tensão entre várias partes.

O traçado do percurso que, no piso inferior, liga o exterior à capela mortuária é o resultado do estudo daquilo que acontece nestes espaços.
Foi determinante, na realidade, o conhecimento do significado do funeral na região do Minho.
Quando visitei o maravilhoso cemitério crematório do arquitecto holandês Pieter Oud, tive a possibilidade de assistir a uma cerimónia fúnebre.
Verifiquei que a atmosfera e a relação das pessoas são decisivamente diferentes do que acontece em Portugal.
Aqui, durante o funeral, a família e os amigos íntimos estão muito próximos do defunto, enquanto muitas outras pessoas, vizinhos e conhecidos, seguem a uma certa distância, naturalmente com menor dor e emoção. Tornou-se por isso necessária uma sequência de espaços com características diferentes.

E também por esta razão pensei num claustro, em que as pessoas vão fumar, conversar ou eventualmente, porque não, tratar de negócios: é uma maneira de reagir àquele relativo desconforto determinado pelo encontro, tão directo, com o problema da morte.
Esta reacção à dor não se encontra, por exemplo, nos funerais na Holanda, durante os quais domina o silêncio total.

Ao claustro segue-se uma primeira galeria, bastante ampla, marcada logo após a porta de entrada, pela parede curva que desce da abside.
Poucos metros depois abre-se, à esquerda, uma outra galeria que tem, no fundo, uma janela vertical de onde se pode ver novamente a estrada.
Não sei qual a conexão entre esta janela e a janela horizontal do nível superior, mas creio que a posição vertical da que está em baixo, no embasamento é devida à procura da sensação necessária do peso, da gravidade.
O percurso termina na capela mortuária, que comunica com a primeira galeria graças a uma janela horizontal.

As pessoas que estão no interior têm, por isso, a percepção das que entram ou saem, exactamente como sucede no nível superior, termina aqui com uma abertura que permite a vista do claustro.
Regressa-se então, uma vez mais, ao ponto de partida, com o rumor da água de uma fonte.
No pátio impõe-se com relevo particular a presença de uma escada, que conduz de novo ao nível superior.
Neste projecto, a unidade é conferida pelos percursos que terminam todos no ponto de partida, circularmente.
A sensação final é realmente de um lugar fechado, bem delimitado.

Sempre me impressionou muito o obsessivo convite à meditação que se sente na maior parte das igrejas.
Na realidade as aberturas são colocadas frequentemente a uma altura tal que não permite que se olhe para o exterior, ao mesmo tempo que a utilização dos vitrais elimina a continuidade e a transparência.
Ao contrário, parece-me que as recentes modificações na liturgia contrastam com esta visão de espaço fechado e segregado.

Quando comecei a estudar o programa, depressa compreendi o enorme alcance desta ruptura na continuidade secular da tradição.
Todavia parece-me que este aspecto não tem qualquer paralelo na vida real da Igreja, na relação entre a igreja e a sociedade.
Por esta razão, e não obstante as necessárias adaptações, procurei preservar a continuidade com a tradição.
Assim, observando atentamente o carácter desta igreja, parece evidente que a sua concepção é substancialmente conservadora.
Esta intenção emerge com clareza do desenho da planta que na realidade exprime uma rígida axialidade.

Contextualmente, a verticalidade do interior é muito forte.
Na realidade, apesar da nave ser de secção quadrada, a articulação de determinados elementos, tais como as duas aberturas por trás do altar, dá o sentido de elevação.
Diversas discussões viriam a reforçar esta ideia de continuidade com a espacialidade canónica.
De resto, os conselhos dos teólogos foram constantes e determinantes.
Assim, por exemplo, o baptistério, inicialmente colocado ao lado do altar, foi posteriormente desviado para perto da entrada, para que anunciasse a presença da assembleia.
Além disso, uma vez que o cortejo dos celebrantes tem de percorrer o eixo longitudinal da igreja, tornou-se necessária a presença de uma porta, na parede curva e inclinada.
O ritual da celebração exige, evidentemente, determinadas opções no tratamento do espaço e na organização dos percursos.

Ao longo de algumas das paredes interiores foi utilizado azulejo.
Era necessário um rodapé resistente, que obviasse aos problemas da limpeza e da manutenção.
No primeiro momento eu tinha pensado num revestimento em madeira.
Mas esta escolha em breve me pareceu infeliz, pois teria anulado a verticalidade da parede e sobretudo porque a reflexão da luz teria sido inadequada.
Pensei então no azulejo que, produzido artesanalmente, conserva uma superfície levemente irregular; isso permite reflexos particulares de luz, enquanto que as juntas, que são deixadas vazias, manifestam uma presença sensível.

A continuidade com o reboco e a unidade da cor são cortadas por essa presença e por aqueles reflexos.
Numa primeira fase, o azulejo ladeava toda a igreja; depois, quer pela necessidade da parede curva chegar até ao solo, quer pela problemática solução do seu contacto com as portas, o seu uso foi limitado.
Um dos objectivos de que se não podia abdicar consistia exactamente em evitar que os pormenores fossem tão evidentes que competissem com a estrutura do espaço.
Trabalhei intensamente na relação, encontro e transição dos materiais.

O azulejo tem a função de resolver o problema da continuidade, atenuando as rupturas existentes.
A maneira de resolver o problema da continuidade.
Atenuando as rupturas existentes.
A maneira pela qual são ligados estes três materiais - madeira, azulejo e reboco - é muito especial, e provavelmente há coisas, que não posso descrever, que me surgiram da experiência do espaço, durante a construção.
Na capela baptismal tenho intenção de desenhar - no interior da parede do acesso - figuras com cerca de seis metros de altura, deformadas segundo a perspectiva.

Estas personagens, que em conjunto representam o baptismo de Cristo, são de uma importância decisiva, neste espaço excepcional, alto e estreito, e serão estilizadas de modo a que não resultem excessivas.
Terão uma presença muito forte, num azul escuro ou em preto, de modo a ressaltarem no azulejo branco.
Já terminei os desenhos, mas não tive coragem de dar inicio à realização: tenho ainda necessidade de tempo.
Os elementos que devem ser desenhados são ainda muitos.
A própria cruz só foi colocada depois da inauguração.

Numa primeira fase tinha pensado numa cruz em madeira, com um trabalho dos contornos não muito bem definido e com volumes sobrepostos, que sugeriam a figura de Cristo.
Depois o desenho passou por muitas outras fases, muito mais simplificadas, para se definir, finalmente, numa cruz em que, no encontro entre vertical e horizontal, na forma da vertical e nas vibrações da madeira, é imediatamente evidente a presença humana.
Quero agora revesti-la com uma lâmina de ouro.
A cruz foi colocada numa posição atentamente calibrada, próxima do altar, e com a luz.
A lâmina de ouro dará, então, uma maior desmaterialização e, não reivindicando protagonismo, reagirá imprevisivelmente com o espaço.

Voltando ao exterior, nota-se uma presença consistente do granito que, nesta região, é um dos elementos mais importantes na paisagem, quer na Natureza quer na construção.
Neste projecto, a plataforma em granito surge como contraponto necessário à leveza e à grande concisão geométrica do volume branco.
Em algumas horas do dia a igreja quase que se desmaterializa: ora parece desaparecer, ora noutras ocasiões, sobressai quase que violentamente.
Era por isso necessária uma base que a prendesse ao solo.

Eu já tinha estado no Peru, onde estudara as construções pré-colombianas, que deixaram evidentemente a marca em certos volumes tão acentuados.»

Álvaro Siza Vieira In Imaginar a evidência, Edições 70











Fonte: Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura


Sem comentários:

Enviar um comentário