Paróquia de S. Cristóvão do Muro

Vigararia Trofa/Vila do Conde
Diocese do Porto - Portugal

terça-feira, 18 de junho de 2013

D. MANUEL CLEMENTE - UM PERCURSO HISTÓRICO-RELIGIOSO


(Tópicos da “última aula” na Universidade Católica Portuguesa, Porto, 11 de junho de 2013)




1) Quando frequentava o curso de História da Faculdade de Letras de Lisboa (1968-1973), participava intensamente na vida eclesial da altura, em especial no Escutismo e na paróquia. Vivendo o pós-Concílio, era grande o sentimento de que o catolicismo de João XXIII e Paulo VI coincidia com a expectativa humana mais essencial, para os crentes e para todos os homens de boa vontade. E digo “mais essencial”, porque me parecia que algumas propostas que convenciam outros, não ultrapassavam o plano político e social mais imediato, quanto a mim insuficiente para corresponder ao drama humano, de qualquer tempo e circunstância. Posso acrescentar que foi este tipo de sentimento e convicção que me levou depois a ingressar no Seminário dos Olivais.

2) Mas era essa mesma participação eclesial e a convicção que a acompanhava que me faziam estranhar a ausência do factor católico na generalidade das matérias históricas que me eram ministradas, sobretudo na época moderna e contemporânea. Por um lado, a ausência temática e, por outro, clara ou em surdina, a herança da crítica oitocentista, na esteira das Causas da decadência dos povos peninsulares, como as apresentara Antero.

Como se fosse incontestável uma síntese deste género:
a) O catolicismo confundira-se com o Antigo Regime e até com alguns dos seus aspectos menos aceitáveis;
b) Foi por isso cultural e institucionalmente combatido pelo liberalismo e pelo republicanismo, aos quais se opôs em permanente reacção, enquistando-se no seu núcleo clerical e rural, perdendo sucessivamente a generalidade da burguesia e do operariado, isto é, os sectores progressivos da sociedade;
c) Seria assim inelutável a secundarização e finalmente a superação do catolicismo como realidade consistente da vida nacional e internacional.

3) Este tipo de reflexões e a sua contradita pela vivência católica que mantinha, agora no Seminário e na Faculdade de Teologia, levaram-me a privilegiar a História da Igreja como campo de estudo, que, ainda discente, me fez também docente. De facto, o Professor António Montes Moreira – que me orientaria depois no doutoramento e foi bispo de Bragança-Miranda – confiou-me os temas portugueses da História da Igreja que nos leccionava, abrindo-me assim a carreira docente que hoje se encerra, quatro décadas depois. Também o ambiente cultural desses anos pedia apresentações mais sólidas da História da Igreja, para melhor nos compreendermos, crentes e não-crentes, do passado para o futuro. Foi em resposta ao pedido dos “professores de moral” que elaborei uma série de fichas temáticas com o título de A Igreja no tempo, cuja primeira edição é ainda dos anos setenta. Ao mesmo tempo que lecionava na Faculdade de Teologia, dava pequenos cursos sistemáticos de História da Igreja, especialmente a catequistas e formadores da fé, além de outras intervenções dispersas.

4) Para mim, porém, a questão maior persistia: - Fora puramente reactiva a atitude cultural e prática do catolicismo nacional e internacional desde o surto do liberalismo? Porém e assim sendo, como se podiam compreender, não só a sua capacidade de resistir a tantos e tão drásticos desafios, mas também a potencialidade que mantinha para se recompor e mesmo para converter religiosamente e entusiasmar militantemente um número considerável de pessoas e em gerações sucessivas? A esta questão responderam-me alguns trabalhos então aparecidos sobre o catolicismo português dos séculos XIX e XX, designadamente de Pinharanda Gomes e Manuel Braga da Cruz. Neles via desfilar nomes, famílias e iniciativas que, desde os anos trinta do século XIX, se tinham de algum modo interligado – ainda que não univocamente – naquilo a que já nesse século se chamara o “movimento católico”. O termo não é exclusivo de Portugal, mas aplica-se a tudo quanto tentou relançar o catolicismo no quadro político-cultural do liberalismo, incluindo alguns dos seus aspectos vivenciais (protagonismo individual, liberdade associativa, etc.) e projectando o Evangelho numa sociedade crescentemente plural.

5) Foi assim que, enquanto na leccionação de História da Igreja Contemporânea dei redobrada atenção a esta temática - seguindo, por exemplo, os debates internos do catolicismo oitocentista, sobretudo latino, em torno de católicos liberais e legitimistas -, na investigação pessoal e nalguns seminários comecei a acompanhar figuras e iniciativas que a pontualizaram entre nós e procuraram reafirmar a virtualidade católica para um Portugal “regenerado” ou “moderno”. Coincidi aqui com idênticas preocupações de outros investigadores, provindos também da Faculdade de Letras de Lisboa, como António Matos Ferreira e Paulo Fontes, que, com outros estudiosos, relançaram nos anos oitenta o Centro de Estudos de História Religiosa (antes Eclesiástica) e a revista Lusitania Sacra.

6) Os estudos que dediquei ao Movimento Católico em Portugal foram depois reunidos (já em 2002) na colectânea intitulada Igreja e sociedade portuguesa do liberalismo à república (reeditada com mais alguns textos em 2012). A tese de doutoramento, em 1992, estudou a primeira tentativa de organização geral desse mesmo “movimento”, protagonizada em 1843 e seguintes pela Sociedade Católica Promotora da Moral Evangélica na Monarquia Portuguesa, tão ambiciosa no desígnio e na teorização dum apostolado com forte participação laical, como efémera na duração e escassa nos resultados imediatos. Fosse como fosse, permitiu-me a seguinte conclusão: «O essencial estava apurado: a partir de 1843, houve sempre no catolicismo português quem compreendesse que a um mundo que se autonomizava em relação à Igreja tinha de responder uma reevangelização autonomizada em relação às opções políticas particulares; e que os meios laicizados requeriam uma militância mais repartida pelo conjunto dos crentes». Da investigação dedicada à temática da recomposição do catolicismo português durante o liberalismo, deixei uma resenha no capítulo que lhe dediquei no terceiro volume da História Religiosa de Portugal (Círculo de Leitores, 2002), com o título A vitalidade religiosa do catolicismo português do liberalismo à república.

7) Foi essencialmente assim o meu percurso docente na Universidade Católica Portuguesa, ainda que diversificado noutras temáticas que abrangeram várias matérias e a História da Igreja no seu conjunto, como o curso de História da Igreja em Portugal que ministrei no Porto de 2007 até agora. Mas o que mais sublinho, pessoalmente falando, é o facto deste percurso docente se entrelaçar com a preocupação profunda de compreender o catolicismo português contemporâneo, para o poder protagonizar adequadamente no serviço eclesial que me tem sido cometido. Ou seja, estudo para agir, numa acção que sempre me exige estudo. Ou ainda, a realidade da Igreja e do mundo pedem-me respeito pela respectiva verdade e exigem-me verdade na resposta que lhes dê. Foi precisamente neste ponto que quarenta anos de discência e docência na Universidade Católica Portuguesa me proporcionaram, entre professores e alunos, um campo permanente de pesquisa e resposta, de didáctica exigente e convivência estimulante. É por isso também que este momento se exprime num profundo e imenso “muito obrigado” a todos vós.

Manuel Clemente

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